
No mundo acelerado do e-commerce, onde um clique pode resultar em uma compra instantânea, o arrependimento posterior tornou-se uma realidade cotidiana. Aquele vestido que parecia perfeito na foto, mas chegou com cor diferente. O eletrônico que não atendeu às expectativas criadas pela descrição online. O curso digital adquirido por impulso durante uma promoção noturna.
Para essas e outras situações, o ordenamento jurídico brasileiro oferece uma proteção específica: o direito de arrependimento. Mas este direito não é absoluto nem automático. Possui nuances, limitações e interpretações que todo consumidor deveria conhecer antes de fazer sua próxima compra virtual. Mais importante ainda, sua aplicação prática nem sempre corresponde ao que está escrito na lei, criando um campo de tensão entre consumidores, empresas e até mesmo órgãos reguladores.
O direito de arrependimento encontra sua base no artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor, uma norma que nasceu em 1990, muito antes da explosão do comércio eletrônico que conhecemos hoje. O dispositivo é claro: “O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.”
Embora a internet não seja expressamente mencionada – afinal, a web comercial ainda engatinhava em 1990 – a doutrina e jurisprudência consolidaram que compras online se enquadram perfeitamente no conceito de “contratação fora do estabelecimento comercial”. A ratio legis é proteger o consumidor que não teve contato físico prévio com o produto.
O parágrafo único estabelece garantia crucial: “Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados.” Esta disposição não deixa margem para interpretação: a devolução deve ser integral e imediata.
O direito de arrependimento tem natureza potestativa, podendo ser exercido unilateralmente pelo consumidor, independentemente da vontade do fornecedor. Não há necessidade de justificativa, fundamentação ou demonstração de defeito no produto. É um direito discricionário que visa equilibrar a relação de consumo onde o consumidor se encontra em posição de vulnerabilidade.
Os sete dias estabelecidos em lei são corridos, não úteis, e começam a contar a partir do recebimento efetivo do produto ou da contratação do serviço. Este “período de reflexão” foi pensado como tempo suficiente para o consumidor avaliar se a compra atende às suas expectativas.
A legislação é expressa quanto à obrigatoriedade de restituição integral. Segundo decisão do Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.340.604, até mesmo os custos de frete e devolução devem ser arcados pelo fornecedor. O relator, ministro Mauro Campbell Marques, foi categórico: “aceitar o contrário é criar limitação ao direito de arrependimento, legalmente não previsto, além de desestimular tal tipo de comércio.”
O marco regulatório do comércio eletrônico veio com o Decreto Federal 7.962/2013, que regulamentou especificamente as contratações via internet. O decreto estabelece que sites devem garantir informações claras sobre produtos e fornecedores, atendimento facilitado ao consumidor e, fundamentalmente, respeito ao direito de arrependimento.
O fornecedor não pode impor qualquer obstáculo para efetivação deste direito, devendo informar, de forma clara e ostensiva, os meios adequados para seu exercício. A rescisão contratual por arrependimento não pode implicar qualquer ônus ao consumidor. Além disso, os sites devem enviar confirmação imediata de recebimento e se comprometer a responder demandas em até cinco dias.
Embora o CDC não preveja exceções expressas ao arrependimento, a doutrina e jurisprudência identificaram algumas situações onde este direito não se aplica ou tem aplicação limitada:
Produtos perecíveis – Alimentos, flores e outros itens com prazo de validade reduzido não podem ser devolvidos por óbvias razões práticas.
Produtos personalizados – Itens feitos sob encomenda com especificações do cliente, desde que este tenha sido devidamente informado da impossibilidade de devolução.
Conteúdo digital – Downloads de software, música, e-books e cursos online já acessados apresentam complexidades específicas, pois o “consumo” se dá instantaneamente.
Produtos lacrados de higiene – Cosméticos, produtos de cuidado pessoal e similares que, uma vez abertos, não podem ser recomercializados por questões sanitárias.
Um dos campos mais complexos para aplicação do direito de arrependimento são as passagens aéreas compradas online. Aqui existe um conflito aparente entre o artigo 49 do CDC e a Resolução 400/2016 da ANAC, que estabelece prazo de apenas 24 horas para arrependimento em compras feitas com antecedência superior a 7 dias do embarque.
A jurisprudência está dividida. Parte dos tribunais, como o TJDFT, tem aplicado integralmente o CDC, garantindo os 7 dias de arrependimento. Uma decisão recente foi enfática: “A possibilidade de desistir de compras feitas fora do estabelecimento comercial aplica-se aos contratos de transporte aéreo, realizados por meio da internet.”
Por outro lado, alguns julgados consideram que a natureza específica do transporte aéreo, com suas peculiaridades de planejamento e reserva de assentos, justificaria tratamento diferenciado. O argumento é que passagens aéreas não requerem verificação física e não ensejam compra desinformada no sentido tradicional.
O Tribunal de Justiça do Paraná consolidou posição favorável ao consumidor: “O prazo para o direito de arrependimento previsto pelo CDC prevalece sobre dispositivo da Resolução nº 400/2016 da ANAC. Teoria do diálogo das fontes normativas.” Esta corrente argumenta que lei federal não pode ser restringida por resolução de agência reguladora.
Outra área de aplicação polêmica são os contratos financeiros. O STJ firmou entendimento de que o direito de arrependimento se aplica a empréstimos e financiamentos contratados fora do estabelecimento bancário. No julgamento do REsp 930.351, a ministra Nancy Andrighi destacou que, após notificação da instituição financeira, o exercício do arrependimento deve ser interpretado como causa de resolução do contrato.
Esta decisão tem impacto prático significativo, especialmente considerando a proliferação de fintechs e plataformas digitais de crédito que operam exclusivamente online. Consumidores que contratem empréstimos via aplicativo ou site têm, em tese, direito de arrependimento no prazo legal.
Na prática, muitos fornecedores criam obstáculos ilegais ao exercício do direito de arrependimento. Estudos do Procon identificaram táticas abusivas recorrentes:
Exigência de produto lacrado – Muitas empresas condicionam a devolução à manutenção da embalagem original, prática que contraria o CDC. O direito de arrependimento incide sobre o produto, não sobre sua embalagem.
Cobrança de frete de devolução – Transferir ao consumidor os custos de logística reversa é ilegal, conforme consolidado pelo STJ.
Burocracia excessiva – Formulários complexos, prazos internos menores que os legais e exigência de justificativas configuram obstrução ao direito.
Demora na restituição – O CDC determina devolução “de imediato”, mas muitas empresas estabelecem prazos próprios de 30, 60 ou até 90 dias.
O CDC oferece proteção adicional para grupos vulneráveis. Contratos celebrados com idosos fora do estabelecimento comercial têm proteção reforçada, com possibilidade de extensão do prazo reflexão em casos específicos. Consumidores com deficiência também gozam de proteções adicionais, especialmente em compras de produtos de tecnologia assistiva.
Plataformas de marketplace apresentam complexidades adicionais. Quando a compra é feita através de intermediador digital (como Mercado Livre, Amazon, Magazine Luiza), a responsabilidade pelo cumprimento do direito de arrependimento é solidária entre marketplace e vendedor.
O STJ consolidou que “a responsabilidade dos intermediadores de compras é objetiva e solidária, pois integram a cadeia de consumo, auferindo vantagem econômica pelos negócios realizados.” Isso significa que o consumidor pode exigir a devolução tanto do vendedor quanto da plataforma.
Compras em sites estrangeiros criam situação jurídica complexa. Quando fornecedor e consumidor estão em países diferentes, a aplicação do CDC depende de o fornecedor ter representante ou filial no Brasil. Sites internacionais sem presença brasileira frequentemente ignoram a legislação nacional, deixando o consumidor em posição de vulnerabilidade.
O Procon-ES recomenda que consumidores verifiquem se fornecedores estrangeiros disponibilizam endereço físico e canal de comunicação no Brasil antes de realizar compras. Na ausência desses elementos, o exercício de direitos básicos pode se tornar impraticável.
A jurisprudência recente tem caminhado no sentido de fortalecer a proteção consumerista. O TJDFT tem sido particularmente ativo, decidindo que empresas não podem se recusar a cumprir o direito de arrependimento alegando se tratar de “política interna” ou “características do produto.”
Uma tendência emergente é a aplicação de multas por obstrução ao direito. O Ministério Público de São Paulo obteve decisão determinando que a Via Varejo (Ponto Frio) pague multa de 2% sobre o preço da mercadoria em caso de não restituição imediata dos valores ao consumidor arrependido.
Pesquisas indicam que grande parte dos consumidores brasileiros desconhece seus direitos básicos no e-commerce. Muitos acreditam que o arrependimento só se aplica a produtos defeituosos ou que precisam justificar a devolução. Este desconhecimento é explorado por fornecedores menos escrupulosos.
Iniciativas educativas de órgãos como Procon e Ministério Público têm enfatizado que o arrependimento é direito básico, não favor comercial. Campanhas recentes ressaltam que consumidores devem exigir seus direitos e denunciar práticas abusivas.
O crescimento exponencial do e-commerce, acelerado pela pandemia, trouxe novos desafios. Compras por impulso aumentaram significativamente, assim como os pedidos de devolução. Empresas estão sendo forçadas a profissionalizar seus processos de logística reversa.
Uma tendência positiva é a adoção voluntária de políticas mais generosas que a lei exige. Grandes varejistas como Amazon, Magazine Luiza e Americanas oferecem prazos estendidos e processos simplificados de devolução, reconhecendo que facilitar retornos aumenta confiança e, paradoxalmente, reduz devoluções efetivas.
A regulamentação de novas modalidades de comércio, como live commerce e social commerce, deverá trazer atualizações normativas. O Marco Legal do E-commerce, em discussão no Congresso, pode consolidar e modernizar garantias consumeristas.
Para exercer efetivamente o direito de arrependimento, consumidores devem observar algumas práticas:
Documentar tudo – Salvar emails, prints da compra, políticas do site e comunicações com atendimento.
Agir dentro do prazo – Iniciar processo de devolução preferencialmente dentro dos primeiros 5 dias para evitar discussões sobre prazos.
Utilizar os mesmos canais – Exercer o arrependimento pelos mesmos meios utilizados para compra (site, app, telefone).
Conhecer exceções – Verificar se o produto adquirido se enquadra em alguma das exceções doutrinárias ao direito.
Buscar orientação – Em caso de resistência do fornecedor, procurar Procon, Consumidor.gov.br ou assessoria jurídica especializada.
O direito de arrependimento em compras online representa conquista civilizatória importante, equilibrando a conveniência do comércio eletrônico com proteção consumerista adequada. Embora a lei seja clara em seus fundamentos, sua aplicação prática ainda enfrenta resistências e interpretações restritivas por parte de alguns fornecedores.
A tendência jurisprudencial tem sido de fortalecimento da proteção consumerista, especialmente através de decisões que coíbem práticas obstrutivas e estendem responsabilidades a toda cadeia de fornecimento. O consumidor brasileiro está gradualmente se conscientizando de seus direitos, exigindo cumprimento integral da legislação.
Para advogados especialistas, este campo oferece oportunidades significativas de atuação, tanto na orientação preventiva quanto na defesa de direitos violados. A complexidade crescente das relações de consumo digitais exige conhecimento técnico específico e acompanhamento constante da evolução jurisprudencial.
O futuro do direito de arrependimento será moldado pela capacidade de equilibrar proteção consumerista com viabilidade econômica do comércio eletrônico, sempre mantendo como norte a vulnerabilidade do consumidor na sociedade de consumo digital.
Advogado, especialista em Redes de Computadores, Segurança da Informação e Proteção de Dados. Pesquisador de novas tecnologias e amante do estudo da evolução da sociedade com as novas demandas tecnológicas.
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